A Ação Penal 470 e os rumos da ciência penal brasileira

Aproximando-se do fim, o julgamento da Ação Penal 470 leva à reflexão sobre quais serão suas possíveis consequências em longo prazo. Indubitavelmente, há muitos âmbitos nos quais essa meditação pode ser feita: no trabalho desempenhado pela imprensa, na percepção cotidiana sobre a prática de determinados crimes, na imagem do Supremo, dentre tantos outros. A mim interessa, até por dever de ofício, imaginar quais serão os impactos do julgamento na esfera acadêmica, em que se reflete sobre o direito e o processo penais com um viés científico.

Pensar o direito significa engajar-se na concepção de um sistema racional, mas sem perder de vista sua aplicabilidade prática. O desafio da ciência jurídica consiste na formatação de modelos que, mediata ou imediatamente, se destinam a resolver problemas concretos com dado grau de segurança e certeza. Usando uma expressão crítica muito disseminada, o que se quer dizer é que a ciência jurídica não pode se encastelar em torres de marfim.

Nessa linha, especialmente a dogmática jurídico-penal apresenta como uma de suas finalidades a criação de modelos de aplicação e interpretação do direito penal que possam fornecer aos operadores caminhos mais claros e seguros na tomada de decisões. Evidentemente, essa perspectiva não significa abandonar quaisquer pautas críticas sobre a realidade, aceitando-a de forma cega; mas incorporá-las à reflexão sobre os conceitos e institutos penais, racionalizando-as à luz dos desenvolvimentos teóricos.

Há muito se alerta, no direito penal, sobre o aumento de complexidade dos problemas que lhe são apresentados. Incontáveis trabalhos científicos vêm sendo desenvolvidos, ao longo dos últimos anos, buscando formatar soluções mais complexas, por meio da adequação de modelos tradicionais ou da criação de novos modelos. Mas, se por um lado é preciso adequar o direito penal à atual complexidade social, por outro não se pode esquecer do cuidado necessário quando de suas concepção e aplicação, tendo em vista as muitas lições históricas sobre o mau uso do direito penal por estados autoritários e totalitários. É, então, entre essas duas perspectivas que a ciência busca desenvolver-se.

Pois bem. O que esse enorme julgamento – robusto não apenas em fatos, acusações e réus, mas também em relevância política e jurídica – parece aportar à ciência penal é o questionamento sobre qual foi o resultado desta empreitada até aqui. Será que conseguimos levar aos operadores do direito o produto da reflexão acadêmica dos últimos anos? Conseguimos sistematizar racionalmente as demandas da realidade e oferecer novos esquadros ao aplicador? Conseguimos influenciar – num sentido positivo – a formação da convicção de promotores, juízes, desembargadores, ministros?

A distância entre o desenvolvimento teórico e a aplicação prática do direito penal sempre foi muito maior do que o desejável, e as diversas sessões do julgamento da Ação Penal 470 causaram, em muitos momentos, perplexidade quanto à disparidade de concepções interpretativas de diversos institutos. Oxalá que este julgamento – que certamente será objeto de muitos estudos no futuro próximo – aproxime ciência e aplicação, fazendo com que a academia preocupe-se sempre com a aplicação concreta do direito penal e com que os operadores busquem apreender dos desenvolvimentos científicos mais atuais soluções factíveis para suas questões práticas.

Artigo publicado originalmente no Valor Econômico.