Por Danyelle Galvão, Ilana Martins Luz, Marina Coelho e Raquel Scalcon
No dia 17 de maio de 2023, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça realizou a sua primeira audiência pública da história para discutir a possível revisão da Súmula 231, que prevê: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”. A audiência foi convocada pelo Ministro Rogério Schietti, relator dos Recursos Especiais n. 2057181, 2052085, 1869764, que contestavam o teor da referida súmula e foram afetados ao plenário da Terceira Seção para julgamento.
A realização de audiência pública para a rediscussão de precedentes obrigatórios e súmulas, nos termos do artigo 927, §2º do CPC, permite democratizar a discussão sobre as teses fixadas pelas Cortes, com a participação de diversas entidades e instituições que, além de impactadas, possuem dados empíricos sobre as consequências das decisões.
No caso específico desta audiência pública, houve discussão plural, com 49 participantes, que incluíram diversas autoridades e, ainda, institutos que atuam no âmbito penal e especialistas na matéria. Todas as partes puderam expor os argumentos, com a defesa de teses favoráveis e contrárias à mudança de entendimento, além da apresentação de dados empíricos relevantes para nortear a decisão sobre o tema.
Os Ministério Público Federal e Estadual foram os primeiros a expor. Houve a participação da Procuradoria Geral da República, do Subprocurador da República Dr. José Adonis, do Conselho Nacional dos Procuradores Gerais, da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, e de alguns Ministérios Públicos dos Estados. Os expositores manifestaram-se de forma contrária ao cancelamento do entendimento, com base nos seguintes argumentos: (a) impossibilidade de redução da pena aquém do mínimo pelas atenuantes na 2ª fase da dosimetria em razão do tema 158 de Repercussão Geral no Supremo Tribunal Federal, que defende a vedação de aplicação da pena aquém do mínimo nesta fase; (b) o entendimento sumulado pelo STJ não violaria o princípio da individualização da pena, porquanto a manutenção da pena entre os patamares mínimo e máximo previstos no tipo penal abstrato seria uma exigência do princípio da legalidade, nos termos da interpretação conferida por estas autoridades ao quanto disposto nos artigos 59 e 68 do CP; (c) a alteração do entendimento causaria insegurança no sistema jurídico pois interferiria nos prazos prescricionais de processos sobre os mesmos crimes e que tramitam na mesma comarca, além de impactar os marcos de pena para a aplicação de acordos e de institutos despenalizadores; (d) a permissão da redução da pena aquém do mínimo conferiria poderes ilimitados aos magistrados, e traria insegurança em relação ao quantum da diminuição, com o inconveniente de permitir a pena zero; (e) haveria uma proteção insuficiente do bem jurídico, com a aplicação de sanções ínfimas aos acusados.
A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), bem como a Associação dos Juízes Federais também se posicionaram de forma contrária à revisão e cancelamento do entendimento sumulado, com base em argumentos técnicos e de política criminal, reforçando muitos dos argumentos utilizados pelos expositores do Ministério Público, principalmente em relação ao princípio da legalidade, separação de poderes e estabilidade jurisprudencial.
Os representantes da Defensoria Pública da União, das Defensorias dos Estados, de entidades ligadas ao direito de defesa e, ainda, os especialistas privados, foram unânimes em se manifestar a favor do cancelamento do entendimento sumulado. De primeiro, alguns especialistas destacaram a possibilidade de rediscussão da súmula, nos termos do artigo 927, §2º do CPC, em razão de alterações fáticas e jurídicas, a saber: (a) o estado de coisas inconstitucional, declarado pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347; (b) a criação e desenvolvimento de diversos institutos despenalizadores, muitos deles focados na confissão do acusado; (c) a flexibilização do princípio da legalidade em favor dos acusados, como ocorreu na aceitação de sanções atípicas mais benéficas previstas em acordos de colaboração premiada.
Quanto ao mérito, os principais argumentos referidos foram os seguintes: (a) razões de política criminal, diante do já exposto estado de coisas inconstitucional, de modo que manutenção da súmula viria a acentuar, ainda mais, a violação de direitos fundamentais em curso; (b) razões de legalidade, na medida em que, desde a Reforma da Parte Geral, em 1984, quando foi revogado o então art. 48 do Código Penal, não mais haveria na legislação qualquer proibição que impedisse a redução aquém do mínimo. Pelo contrário, o art. 65 do Código Penal utiliza a expressão “sempre atenuam”, conferindo uma obrigatoriedade à incidência da atenuante sem exceção, em respeito à legalidade; (c) razões de igualdade material e individualização da pena, na medida em que, atualmente, pessoas com diferentes culpabilidades e que cometeram delitos com diferente gravidade acabam recebendo igual pena; (d) razões dogmáticas, haja vista a natureza das atenuantes, que apenas em grau difeririam das causas de diminuição da pena, tratando-se, ambas, de hipóteses de culpabilidade reduzida e de menor gravidade de injusto concreto e (e) razões relativas à estrutura da dosimetria da pena, na medida em que teria havido um erro histórico, confundindo-se método e limite – o artigo 68 estabeleceu um método de dosimetria, não um limite. Além disso, houve contraponto a alguns dos argumentos apresentados por aqueles que sustentaram a inviabilidade da revogação da Súmula 231. Nesse sentido, destacamos a oposição à ideia de insegurança jurídica, de indeterminação das penas e de supostos riscos de “pena zero”, que seriam, nas palavras de alguns expositores, discursos de “emergência”, com a intenção de causar temor, em lugar de racionalizar o debate. Para além, restou demonstrado na audiência que é matematicamente incorreto falar-se em pena zero, uma vez que o processo de aplicação da pena é realizado por meio de operações matemáticas sucessivas (em cascata). Por fim, alguns especialistas trouxeram dados numéricos frutos de pesquisas que demonstram a injustiça da súmula 231. Neste sentido, o Conselho da Comunidade de Curitiba apresentou dados de pesquisa realizada em conjunto com a Defensoria Pública do Estado do Paraná em que foi possível constatar que a súmula incide sobre 21% das condenações do Estado, sendo responsável pelo incremento médico de 203 dias de prisão nestes casos.
Ao final da tarde, refletindo sobre o debate, chamou-nos a atenção a baixa representatividade feminina nas sustentações, que se resumiu a algumas Defensorias Públicas, a entidades privadas e a especialistas. Importante, nesse sentido, pontuar que todas as mulheres que utilizaram a tribuna foram favoráveis à revogação da Súmula 231.
O balanço da audiência pública foi imensamente positivo. No Tribunal da Cidadania, A convocação em temas dessa magnitude é prática que merece ser enaltecida e repetida, pois confere legitimidade substancial à decisão que será tomada e que, espera-se, seja no sentido da revogação da Súmula 231.
Artigo publicado originalmente na Estadão.