A racionalidade do sistema penal brasileiro

Desde que as condenações da Ação Penal nº 470 começaram a se delinear no Supremo Tribunal Federal (STF), uma das perguntas ouvidas todos os dias por

quem trabalha na área penal passou a ser: “Mas os condenados vão mesmo para a cadeia?”. No imaginário público, há uma forte ideia de que a única consequência aplicável à prática de um crime é a prisão – todo o resto seria impunidade.

Entretanto, há tempos as ciências penais têm debatido sobre os malefícios da pena privativa de liberdade. Inadequadas à ressocialização e propícias a causar brutais violações de direitos, as prisões muitas vezes geram problemas maiores do que aqueles que, em tese, deveriam auxiliar a solucionar. Nessa linha, nosso Código Penal buscou estruturar um sistema que reduza o uso da prisão a casos considerados mais graves, aplicando-se aos demais outras formas de sanções.

Assim, prevê o código que, para penas de até um ano, poderá o juiz substituir a prisão por uma pena de multa. Já as chamadas penas alternativas – como a prestação de serviços à comunidade ou a entes públicos, a interdição de direitos ou a limitação de fim de semana – podem ser aplicadas quando a condenação chegar a até quatro anos de pena (no caso de crimes culposos, não há limitação), desde que o crime tenha sido cometido sem violência ou grave ameaça, o réu não for reincidente na prática do mesmo crime e as características do delito levarem à conclusão de que tal punição é suficiente. Outra possibilidade legal é a aplicação do sursis, ou suspensão condicional da pena, prevista para condenações de até dois anos, segundo o qual deverá o condenado cumprir determinadas condições, em liberdade, por um período de prova de dois a quatro anos. Há ainda, acordos previstos para crimes com penas consideradas mais baixas, que podem ser realizados pelo Ministério Público, com anuência do juiz. Todas essas medidas buscam evitar o uso da prisão a casos considerados menos graves, especialmente se o condenado não é reincidente.

As penas privativas de liberdade, por sua vez, foram equacionadas em três regimes de cumprimento: o aberto, o semiaberto e o fechado. O regime aberto é destinado a não reincidentes, condenados a penas de até quatro anos, e determina que o condenado recolha-se durante o período noturno e dias de folga. O regime semiaberto pode ser aplicado a penas de até oito anos, desde que o condenado não seja reincidente, e é cumprido em colônia agrícola ou industrial. Já o regime fechado é cumprido em estabelecimento prisional apropriado, devendo o condenado trabalhar durante o dia.

Além disso, existe uma previsão de progressão de regimes: de acordo com o tempo cumprido de pena e o comportamento do condenado, ele poderá progredir para um regime mais benéfico. Por outro lado, caso cometa infrações prisionais, pode regredir a regime mais gravoso. Desta forma, estimula-se o bom comportamento, o trabalho e o estudo do condenado, além de prepará-lo paulatinamente à saída do sistema prisional – que costuma ser um momento de enorme crise na vida de quem cumpriu pena de prisão.

Infelizmente, esse sistema sofre de incontáveis dificuldades práticas para seu funcionamento. Faltam estabelecimentos para o cumprimento do regime semiaberto; os estabelecimentos fechados estão superlotados e muitos não oferecem possibilidade de trabalho; há problemas de fiscalização no regime aberto e, em muitos locais, inexiste estrutura para o cumprimento de penas alternativas.

Pode-se discordar de alguns parâmetros ou de regras pontuais desse sistema. Ainda assim, trata-se de um sistema racionalmente fundado, que busca aplicar as sanções penais de modo mais escalonado e proporcional, tentando reduzir – pois impossível extirpar – os malefícios sociais e individuais gerados pelas penas de prisão. Longe de significar impunidade, a redução do uso da prisão e a busca por formas alternativas de resposta penal precisam ser seriamente refletidas no Brasil, um dos países que mais encarcera no mundo.

Artigo publicado originalmente no Valor Econômico.