A solução para evitar um genocídio não é dar mais poder e arbítrio ao Estado
Um homem de complexidade definhada, óculos largos e grossos que afundam seu rosto já naturalmente sugado pelos poços depressivos de onde se permite apenas deduzir serem seus olhos.
Na prática, é apenas uma sombra.
O ano era 1961 e começava em Jerusalém o julgamento de um dos maiores algozes da história da humanidade: Otto Adolf Eichmann, destacado pela SS para dirigir toda a logística de transporte de judeus aos campos de extermínio do Leste Europeu.
A proposta deste meu texto é defender que a condenação por crime desse monstro violou um Direito Penal liberal. No entanto, não é uma tarefa fácil, confortável e muito menos recheada com a serenidade de quem está certo da sua posição.
Afinal, como judeu neto de poloneses dizimados em Auschwitz e Treblinka, confesso que em boa parte escrevo menos para fora, e bastante para dentro (a mim mesmo), numa tentativa falha e desesperada de me autoconvencer das posições que defendo já há algum tempo – seguramente desde que me apaixonei pelas ciências criminais, paixão essa que instrumentalizo pelo ofício da advocacia penal.
Ademais, a ansiedade da insegurança é incrementada pelo fato de pessoas muito mais gabaritadas do que eu terem opinião completamente oposta, algo que tive a honra e oportunidade única de conhecer ao assistir à aula magna na Universidade de Göttingen proferida por quem talvez seja o maior penalista de nossa geração: Claus Roxin.
No entanto, embora haja discordância do ilustre jurista teutônico (quem defende a licitude do julgamento de Eichmann), reverencio-o ao transitar no espaço deixado propositadamente em aberto na teoria do delito brilhantemente organizada em seu Tratado de Direito Penal: tomo I, por meio da qual defende que o Direito Penal deve ser teleológico (deve se construir por uma finalidade), mas reconhece que a finalidade é determinada por uma variável de cunho político (de política criminal). Não responde, então, qual deve ser a finalidade, apenas que o direito penal deve ser orientado por ela (estabelecendo limites democráticos a tanto, claro).
Busco então a partir de uma perspectiva política, e não técnico-jurídica, refletir se cumprimos uma finalidade política-criminal adequada ao Direito Penal pelo enforcamento de Eichmann em 1962.
Para tanto, recorro à memória (própria e ancestral), e às lições eternas de Hannah Arendt na sua obra Origens do Totalitarismo: podemos punir o que não podemos perdoar?
Em 2015 participei da Marcha da Vida Universitária organizada por Celso Zilbovicius, quando testemunhei pessoalmente as instalações de Auschwitz-Birkenau e Treblinka. Pior ainda foi ficar diante de Majdanek, pois a sua estrutura quase que absolutamente intacta recruta um sopro gelado de realidade, de memória e de história, que nos permite (minto: nos obriga) a sentir na pele a possibilidade de aquele lugar de morte e extermínio ser reativado em 48 horas.
Experiência e trauma. Primo Levi, sobrevivente judeu italiano, na sua obra “É isto um homem?”, evitando-se sempre recorrer à imagem da pilha de mortos para expressar o que era estar num campo polonês da década de 40, procura mostrar como a vida era esvaziada de quem ainda não havia morrido. Suga-se o ser humano, e não apenas sua vida:
“Suas vidas são curtas, mas seus números intermináveis; eles, os Muselmänner, os afogados, foram a coluna vertebral do campo, uma massa anônima, continuamente renovada e sempre idêntica, de não-homens que marcham e laboram em silêncio, o centelho divino assassinado por dentro, já vazios demais para sofrer. Hesito de chama-los de vivos; hesito em chamar a morte deles de morte, em face da qual eles não têm medo, como estão cansados demais para entender”.
Já em Majdanek (campo da Cracóvia), a “excursão” acaba num mausoléu onde se guardam as sobras das cinzas que não puderam ser escondidas pelos Nazistas no momento em que as tropas aliadas liberaram o campo. Veja: era só o que havia “sobrado” das cinzas e mesmo assim o suficiente a perder de vista. Um morro de seres humanos anônimos e amorfos.
Ao escrever, os calafrios voltam.
Por isso que Primo Levi nunca recuperou a humanidade que lhe foi extirpada no campo, de forma que em 1987 tirou a própria vida; há dissenso entre historiadores sobre essa versão de seu falecimento, mas o que se diz é que Auschwitz o levou 40 anos depois…
Caros, relato tudo isso a expressar minha ligação emocional com esse tema, já que há uma boa probabilidade (para não falar de certeza) que Otto Adolf Eichmann foi o responsável direto por arrastar ao menos 9 de 10 irmãos do meu avô Srul Wajnszelbojm, pai de minha mãe, às condições descritas por Primo Levi, e, por isso, de ter-lhes apagado a humanidade (isso para não relatar meus entes paternos, também judeus poloneses vítimas da Shoá).
Esses meus parentes foram jogados num vagão de trem projetado para transporte de carga viva (leia-se gado), em viagens atravessando o gélido inverno polonês sem comida ou aquecimento, semanas a fio, carentes de espaço sequer para sentarem-se ou lugar para irem ao banheiro.
Tudo por ordem e organização direta de Eichmann.
Assim, defender a impossibilidade de punição criminal pelas atrocidades praticadas por esse monstro toca em regiões de desconforto e até certa extensão culpa -não ignoro e nem desprezo um sentimento que me é natural de ver meus antepassados vingados pela mão pesada e rigorosa do Estado contra Eichmann.
Mesmo diante disso tudo, meu raciocínio é simples e bastante conhecido: não há crime sem lei anterior que o defina.
Ora, estamos diante então do grande dilema do século: queremos (ou precisamos?) punir Eichmann, mas ao mesmo tempo o Direito Penal não nos fornece instrumentos para tanto.
Que encruzilhada…e a conclusão parece fatídica: o Direito Penal liberal é injusto e insuficiente para demandas em situações de excepcionalidade e maldade extrema.
Acontece que esse é um falso dilema e pelo simples motivo de o Direito Penal ser apenas um caminho, não o único, de se resolver os problemas da sociedade.
O Direito Penal, como o conhecemos hoje, passou por um minucioso e demorado processo de amadurecimento histórico até atingir suas balizas liberais e democráticas da atualidade.
Trabalhava-se, antes de Beccaria – o pai do iluminismo penal – com a ideia de que direito penal era, grosso modo, vingança num primeiro momento (e expiação dos pecados num momento posterior, o que não vem ao caso).
Isto é, para evitar o descontrole social, de brigas familiares eternas (como acontece com as máfias hoje em dia) deu-se ao Estado o poder de vingar-se no lugar no particular, evitando um ciclo interminável de violência.
Não é mais assim, e hoje atribuiu-se ao Direito Penal uma função mais democrática e racional, já que a pessoa não pode ser objeto de satisfação emocional, e sim sujeito de um sistema que deve buscar recuperá-la.
Dessa forma, questiono: se precisamos nos desvencilhar da anacrônica função vingativa do direito penal a interpretar a punição de Eichmann, precisamos entender que ele já é um velho apodrecido, e o Nazismo, justamente pela sua excepcionalidade que o tanto caracteriza, já não tem mais influência no nosso mundo.
Nessa toada, o enforcamento passa ser um símbolo, uma mensagem, e não mais um ato necessário a impedir que aquele indivíduo concreto possa causar mais sofrimento.
O que estamos querendo evitar então? Qual símbolo estamos promovendo? Simples: de que não será tolerada a morte sistematizada de pessoas pela condição subjetiva humana em que se encontram (judeus, homossexuais, negros, etc.). Genocídio.
Nessa toada, enforcar Eichmann, ignorando os limites do direito penal, cumpre esse papel?
Ao buscar essa resposta, recordo-me sempre da minha primeira grande lição sobre a Shoá que me foi ministrada por uma professora nos corredores da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco: Cláudia Perrone Moisés.
Naquelas manhãs no centro da cidade, nos debruçávamos sobre direito penal internacional público e me lembro de dois documentários apresentados em sala de aula, um dos quais retirei a referência para minha descrição que inaugurou essa reflexão: “O Especialista”, de Leo Hurwitz, e “Noite e Neblina” de Alain Resnais.
Ordinariamente quando pensamos na punição de Eichmann, nos vem à mente as imagens que se passam no segundo curta metragem: corpos empilhados em valas comuns, cujo volume era tamanho que precisavam ser retirados por retroescavadeiras; crianças em grau de desnutrição que parecem cadáveres ambulantes; pessoas organizadas em macas que mais parecem estantes, gavetas, como se estivessem guardando coisas, e não acomodando pessoas.
Acontece que tudo isso é reflexo da maldade extrema do ser humano, e da maldade não há lei, ou consequência jurídica, que possa nos proteger. Ela surge no escuro, miúda, imprevisível. Organicamente.
Acontece que o Nazismo foi excepcional não pela maldade, mas pela sua banalidade (invocando as eternas palavras de Hannah Arendt, justamente para descrever Eichmann).
Sua instrumentalização, pela industrialização da morte.
Isso é vividamente observável no documentário “O Especialista”, ao perceber-se que cada pergunta que lhe era formulada, o monstro se levantava e respondia; ao final, sentava-se novamente, apenas para segundos depois, levantar-se novamente a responder a próxima pergunta (que ouvia sentado).
Ele poderia muito bem permanecer sentado – isso seria mais cômodo e demonstraria desprezo pelo julgamento, um ato de resistência e rebeldia; poderia, por outro turno, permanecer em pé – também menos cansativo do que o repetido ato de se levantar e sentar, mas demonstraria submissão, ressentimento, entrega.
Eichmann preferiu a postura menos confortável, só que infinitamente mais simbólica: de mostrar respeito pelo processo do julgamento, porque era e sempre fora um burocrata. Nunca um sádico (havia sádicos no regime nazista, não era um deles).
Assim, a imagem que me vem ao pensar o que precisamos evitar pelo seu enforcamento não são os corpos, fruto da maldade humana, mas é a filmagem da postura daquele burocrata que vemos em seu julgamento, da banalidade.
Agora veja que interessante: essa sistematização e industrialização com que o Nazismo se encarregou de massacrar os judeus e outras minorias não foi viabilizada pelo sadismo, e sim pela mão e interferência do Estado.
Trocando em miúdos: o que garantiu a excepcionalidade maligna do Nazismo foi justamente a legitimidade que se concedeu à força total do Estado Alemão.
Por isso tenho bastante convicção de que a solução para evitar genocídio não é dando mais poder e arbítrio ao Estado (ao permitir punições por crimes sem lei anterior); a forma de evitar isso é limitando sua potência. É dizer: por mais contraditório que seja, enforcar Eichmann ajuda a incrementar o risco de novas perseguições.
Fecho, portanto, esse texto concluindo que não há instrumento, jurídico ou não jurídico, que impedirá o homem de exprimir maldade; por outro lado, o Direito Penal não dará conta de evitar sua banalização por meio de julgamentos arbitrários, como foi o caso de Eichmann. Pelo contrário.
Daí porque o dilema entre direito penal liberal e justiça intuitiva é uma falácia alimentada pela nossa vontade de vingança (que reage institivamente mais ao sadismo do que à banalidade). Já que nem para tudo serve ao direito penal, e por demais das vezes valer-se dele é contraproducente ao dano que queremos evitar pelo seu emprego.
O caminho, aqui, então, não é a forca – e o motivo passa longe de uma submissão cega às instituições jurídicas vazias: é um caminho de nos desvencilharmos da cólera ineficiente. De entendermos que para certos problemas, a vingança não resolve, e o direito penal não é a solução.
Claro que precisamos sim lutar para que cenas da Noite e Neblina não se repitam; no entanto, nosso objetivo primordial é manter cenas como a do Especialista no passado: um Estado que banaliza, relativiza, diminui o sofrimento, sem precisar necessariamente de sadismo para tanto, é a fórmula chave para as atrocidades.
Aqui mora o perigo, e estejamos atentos para os Eichmanns de nossos tempos. Do nosso lar.
Na prática, são apenas sombras.