O Supremo e os recursos

Em suas mais recentes sessões dedicadas à Ação Penal 470, o Supremo Tribunal Federal julgou os embargos de declaração opostos face ao longo acórdão resultante do julgamento do mérito da ação. Tal recurso é relevante, já que abre caminho para que o órgão julgador corrija contradições, omissões e obscuridades. Verificadas contradições, os embargos de declaração podem apresentar efeitos infringentes, isto é, podem modificar a decisão naquele ponto em que se revelou contraditória. O julgamento dos embargos de declaração da Ação Penal 470 não apenas ajustou algumas questões pontuais, esclarecendo determinadas linhas de pensamento do tribunal sobre dadas matérias, como também alterou a fixação da pena de alguns réus, corrigindo contradições.

Diversos pontos, contudo, não foram alterados. Por exemplo, quanto à discussão sobre quem é competente para decidir sobre a perda de mandato dos parlamentares condenados, não houve mudança no entendimento original. Assim, manteve-se a concepção de que é o Supremo quem deveria decidir sobre a perda do mandato relativo aos acusados na Ação Penal 470, apesar de tal orientação já ter sido alterada pelo próprio tribunal, em julgado posterior. Isso decorreu do fato de que a contradição foi verificada em julgamento de outro caso, não se tratando daquela contradição interna (que ocorre na própria decisão recorrida) exigida para cabimento de alteração por meio de embargos de declaração.

Contudo, a grande questão a ser enfrentada nessa fase de julgamento de embargos será a admissão ou não dos embargos infringentes. Já se debateu sobre esse recurso e as discussões jurídicas a ele relativas quando do julgamento do mérito da ação. Entretanto, cabe uma breve retomada do assunto, já que será essencial nas próximas sessões. O regimento interno do Supremo Tribunal Federal afirma, em seu art. 333, que “cabem embargos infringentes à decisão não unânime do Plenário ou da Turma” que “julgar procedente a ação penal”. Mais adiante, esclarece serem necessários ao menos quatro votos divergentes para que seja cabível o recurso de embargos infringentes. Todavia, a Lei 8.038/90, que regula as ações penais originárias, ou seja, aqueles processos penais que devem se desenrolar nos tribunais e Cortes superiores, não fala nada sobre a existência de embargos infringentes.

Diante disso, instaurou-se a discussão: teria a Lei 8.038/90 revogado tacitamente (já que tampouco revogou explicitamente) a previsão do regimento interno do STF? Há bons argumentos jurídicos a embasar ambas as posições. De um lado, a Lei 8.038/90 é posterior e regulamentou toda a matéria, o que poderia levar à conclusão pela impossibilidade de cabimento de embargos infringentes. De outro lado, a própria Lei 8.038/90 estabelece que, terminada a fase de produção de provas, o tribunal julgará a ação penal nos termos do seu regimento interno. Esse dispositivo reconhece, portanto, as previsões dos regimentos internos, reforçando sua validade e força. Além disso, sem qualquer incompatibilidade flagrante e na ausência de uma previsão de revogação das disposições sobre a matéria, não é possível concluir, sem maior reflexão, pela revogação de uma norma.

É importante lembrar que essa discussão antecede qualquer decisão sobre a alteração das condenações ou fixação de penas nas quais houve quatro votos divergentes. Se o Supremo decidir que os embargos infringentes não são cabíveis, sequer analisará se as condenações e as penas devem ou não ser alteradas. Esse, aliás, foi o voto do ministro Joaquim Barbosa já proferido ontem. O tribunal reabrirá a discussão, apenas se aceitar, preliminarmente, o cabimento do recurso, estando limitado àqueles pontos quanto aos quais houve divergência de ao menos quatro votos no julgamento.

Deixando de lado os argumentos puramente legislativos, resta indagar se a admissão dos embargos infringentes seria salutar ou não para a legitimidade e a força da decisão do Supremo. Particularmente, em se tratando de uma decisão que não está sujeita a um segundo grau de jurisdição – já que não é possível apelar das decisões do Supremo a outras Cortes -, bem como de uma decisão extremamente relevante e paradigmática no que se refere aos acusados e à matéria tratada, parece que seria importante que o Supremo admitisse o cabimento do recurso. Destaque-se que essa afirmação não se confunde com professar mudanças no mérito do julgamento. Diante de um caso tão especial, aqueles pontos que foram decididos por uma maioria estreita – ficando, ao menos, quatro ministros vencidos – merecem ser revisitados, novamente refletidos e rediscutidos. É claro que existe uma ansiedade para que o julgamento se encerre definitivamente, assim como um clamor pela expedição de mandados de prisão. Entretanto, algumas poucas sessões de julgamento (até porque são pontuais as hipóteses de divergência de quatro votos) reforçariam a legitimidade da decisão do Supremo, além de enriquecer o debate jurídico, por meio do aprofundamento e maior esclarecimento das posições jurídicas tomadas pela Corte.

O debate jurídico está posto e, mais uma vez, caberá ao Supremo esclarecer seu entendimento sobre ele, com a grande responsabilidade que suas decisões geram.

Artigo publicado originalmente no Valor Econômico.