Publicado na coluna de Malu Gaspar em O Globo
A tese adotada pela defesa de Jair Bolsonaro para eximi-lo de responsabilidade na disseminação de posts com ataques ao sistema eleitoral pode acabar invalidada no decorrer de uma eventual investigação.
Isso porque o Código Penal diz expressamente em seu artigo 28 que não “excluem a imputabilidade penal a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos.” Para cinco especialistas ouvidos pela equipe da coluna, esse artigo é um conceito básico do direito penal, sobre o qual não há qualquer polêmica. Por isso, certamente o argumento de Bolsonaro será contestado pela Polícia Federal.
Em depoimento nesta quarta-feira no inquérito que investiga a autoria intelectual dos atos golpistas de 8 de janeiro, o ex-presidente afirmou que postou sem querer um vídeo em que contesta o sistema eleitoral porque havia se submetido a uma cirurgia dias antes e estava sob o efeito de morfina.
O vídeo postado na pagina de Bolsonaro no Facebook dois dias depois da invasão e depredação generalizada nas sedes dos Três Poderes, em Brasília, trazia uma entrevista de um procurador do Mato Grosso do Sul a uma rádio de seu estado, dizendo que Lula não foi eleito pelo voto, mas “pelo sistema eleitoral” e que, por isso, as Forças Armadas deveriam “intervir no sistema político para reestabelecer a ordem”. O post foi apagado menos de duas horas depois, mas àquela altura o vídeo já estava circulando nas redes sociais.
“Este vídeo foi postado na página do presidente Facebook quando ele tentava transmitir para o seu arquivo de WhatsApp para assistir posteriormente. Por acaso, justamente nesse período, ele estava internado em um hospital em Orlando”, disse o advogado Paulo Cunha Bueno, que acompanhou o ex-presidente no depoimento. Bolsonaro não deu declarações.
A oitiva de Bolsonaro durou duas horas e meia e foi determinada pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que atendeu a pedido apresentado pela Procuradoria-Geral da República (PGR).
Para advogados ouvidos pela equipe da coluna, o argumento da defesa do ex-presidente não se sustenta. A tese da morfina também foi considerada um erro pelo entorno de Bolsonaro.
“Eu trabalho na área criminal há 24 anos e esse me parece um argumento até pueril. Alegar embriaguez ou uso de drogas não é suficiente para afastar a responsabilidade criminal”, diz Helena Lobo Costa, sócia do CAZ Advogados, criminalista e professora de Direito Penal na Universidade de São Paulo.
Na entrevista que deu após a oitiva, ex-ministro da Secretaria de Comunicação e atual assessor de imprensa de Bolsonaro, Fabio Wajngarten, afirmou que ele “nem sequer havia percebido que havia postado o referido conteúdo”. Segundo o ex-ministro, “assim que alertado”, Bolsonaro apagou o conteúdo.
As declarações sugerem que a estratégia jurídica de Bolsonaro será tentar recorrer ao uso da droga não para afastar a inimputabilidade, e sim o dolo — quando fica provado que a pessoa teve a intenção de cometer um crime. Ainda assim, trata-se de uma tese frágil, na opinião de Helena Lobo Costa.
“É verdade que o equívoco afasta a responsabilidade em várias situações. Apagar o post poderia indicar que houve equívoco, mas não estamos falando de um fato corriqueiro. O que houve em 8 de janeiro foi um ataque aos poderes, uma depredação generalizada, e o autor do post é ex-presidente da República. Se fosse mesmo um equívoco, uma postagem com a qual ele não concordasse, teria que ter gerado uma retratação ou um outro post se manifestando contra os ataques de forma contundente.”